Fonte: http://www.bbc.com
A imprensa diariamente fala sobre o avanço catastrófico de um dos maiores desastres da história planetária, o rompimento da barragem da mineradora Samarco em Mariana – MG. Hoje (25/11), a ONU criticou duramente o governo brasileiro por se colocar de maneira defensiva e fazer muito pouco frente à catástrofe. Para o órgão a empresa e o governo incorrem no desrespeito aos direitos humanos por negligenciar medidas preventivas e de mitigação dos enormes danos. No mesmo dia, ironicamente, manifestantes que jogaram lama no corredor do Congresso foram presos por… dano ambiental! Vale a pena parafrasear a exclamação de uma historiadora amiga minha diante de certos absurdos comuns em nosso país: – “BRASIL!”
Esse evento é muito rico e múltiplo para os historiadores que vierem, um dia, a se debruçar sobre ele. Economia, política, sociedade, cultura, justiça, ambiente, direitos humanos, tudo se mistura e emerge nas múltiplas materialidades emergentes, re-emergentes, fortalecidas e enfraquecidas com o rompimento da barragem. Alguns historiadores ambientais ultimamente chamam a atenção sobre a oportunidade que a catástrofe trás de se pensar as relações entre humanos e o mundo natural. Mas eu quero aqui chamar atenção para uma oportunidade de se pensar para além da dicotomia, a partir da pluralidade de entidades e fluxos materiais que conformam realidades e narrativas possíveis.
Penso que o rio Doce foi transformado. A mistura de água com diversos elementos químicos, metais pesados e mercúrio, formando a espessa lama que tomou a extensão do curso fluvial até o mar o tornou outra coisa. E sua força no tempo-espaço só pode ser analisada no mapeamento do contato material dos múltiplos entes que perfazem o novo rio Doce com animais, plantas, humanos, solo, objetos técnicos e outros corpos de água. É necessário entender esse processo de forma fractal e emergente, pensando o que é esse novo rio Doce. As narrativas humanas que emergem desse contato podem ajudar o historiador a realizar esse mapeamento, mas nunca serem encaradas como “a história do evento”, reificando, assim, as representações.
Lich no jogo Dungeons & Dragons
Vejo atualmente, em muitas entrevistas sobre a situação do rio Doce, a expressão “o rio está morto”. Considero pouco adequado pensar assim. Podemos até dizer que ele está morto, se utilizarmos, em seguida, como metáfora, a imagem do lich. Um lich é um personagem de ficção que emergiu em quadrinhos e jogos, especialmente nas décadas de 1960 e 1970. Trata-se de um morto-vivo, incomparavelmente superior aos demais mortos-vivos. Ele é dotado de inteligência acima do normal, possui poderes mágicos e geralmente é um nobre. É uma criatura extremamente poderosa que pode transformar qualquer um em morto-vivo e erguer grandes exércitos de mortos com apenas um movimento das mãos. Um exemplo de lich é o comandante dos “caminhantes brancos”, do seriado Game of Thrones, que apareceu no último episódio da quinta temporada, erguendo um enorme exército de mortos-vivos na frente do herói Jon Snow.
Lich erguendo um exército de mortos no seriado Game of Thrones
O rio Doce hoje é como um lich. Uma entidade extremamente poderosa, um nobre caído que promove morte, destruição e transforma organismos humanos e não-humanos a partir do contato com elementos químicos que transporta consigo e ajuda a espalhar. Assim, os impactos temporais e espaciais da existência dessa nova entidade são imprevisíveis. Creio que o historiador não pode se ater apenas às narrativas do evento, mas encarar o rio Doce como uma “federação de entidades materiais humanas e não-humanas em agentic swarm”, como diria a cientista política Jane Bennett. Assim, para além de quaisquer dicotomias, o historiador deve seguir essas entidades mundo afora, mapeando as dramáticas transformações promovidas pelo novo (e mortífero) rio Doce. Isso nem de longe significa deixar de lado as causas humanas pela transformação do rio Doce, mas significa ampliar o nosso olhar sobre as consequências irresponsáveis de nossas decisões na esfera política e econômica.