#DifraçõesHistóricas

Uma escrita da História no tempo das contingências

Gilbert Simondon e a crítica ao ambientalismo (1983)

Sandra Cretu no clipe da música Midnight Man (1986)

Sandra Cretu no clipe da música Midnight Man (1986)

Environmentalists believe the technique as being in accordance with nature. It is antitechnocratique. All that I ask these movements is not to reject mystical technicity. They need to learn scientific ecologists, such as DuMont, e.g., conditions under which the technical objectdoes not damage nature. If plowing the soil has a laterization trend, it depletes the earth in a few years. What works is the plow that prevents it from becoming brick. I totally agree on the necessity to adapt the technical object to nature [1].

Essa crítica do filósofo francês Gilbert Simondon aos movimentos ambientalistas foi feita em uma entrevista à revista Esprit em abril de 1983. De acordo com Simondon, os ambientalistas ou “fisiocratas contemporâneos”, conforme ele aponta, negligenciavam o estudo dos objetos técnicos, priorizando temas ligados a “preservação da natureza”, como se ambas as questões ou processos fossem separados um do outro. Os objetos técnicos, assim, continuavam em situação miserável graças à alienação e o desprezo de muitos intelectuais pelas formas de existência desses artefatos.

A crítica aqui está intimamente ligada a sua principal obra o Du mode d’existence dês objets techniques, sua tese defendida em 1958. Nessa tese, ele aborda a coexistência de duas posturas distintas frente aos objetos técnicos, fruto do desconhecimento de sua natureza. Uma que seria tecnofílica (otimista pelo desenvolvimento, aplicação e aquisição dos objetos técnicos de forma meramente utilitária) e a outra, tecnofóbica (pessimista, resistente, em grande parte, pelo medo suscitado da possível insurreição da máquina contra o humano). Simondon forja o conceito de individuação, onde o objeto técnico adquire autonomia em seu processo de gênese, estabilizando e organizando os processos psíquicos e sociais. O objeto torna-se também mediador da relação entre humano e natureza [2]. Esse conceito foi uma forma encontrada pelo filósofo de reintegrar a realidade técnica à cultura, de modo a pôr em sintonia a evolução de máquinas e humanos.

Cabe ressaltar que Simondon não era o único a pensar sobre a co-evolução entre objetos técnicos e humanos nesse período. Sua obra encontra-se ao lado da de outros autores da época, como o antropólogo francês André Leroy-Gourhan, o geógrafo Henry Lefebvre, dentre outros. O desprezo pelo conhecimento dos objetos técnicos e a tecnofilia também seria abordado no cinema, em Alphaville (1965) filme no estilo tech-noir de Jean-luc Godard. O pensamento de Gilbert Simondon teria impacto, anos mais tarde, na obra do também filósofo Gilles Deleuze.

Anna Karina em cena de Alphaville (1965)

Anna Karina em cena de Alphaville (1965)

Pouco mais de 30 anos depois da publicação da crítica de Simondon aos ambientalistas, cabe perguntar: o que mudou? Os ambientalistas continuam atentos a formas de energia renováveis, como no tempo da publicação dessa entrevista (Simondon elogia o incentivo à energia solar e a implementação de técnicas menos agressivas ao ambiente, por exemplo). Mas o objeto técnico, atualmente, mais do que nunca, se resume a uma commodity. Em 1983, o filósofo francês criticava o fato dos carros serem produzidos com pintura e sistema elétrico frágeis, forçando as pessoas a adquirirem outro veículo, mesmo que o motor estivesse em boas condições. Ele criticava também a busca desenfreada por supostas novidades técnicas que, em sua essência, não melhoravam o objeto, apenas alteravam cores e formas. Vivenciamos essa mesma situação de forma mais intensa com praticamente todos os objetos técnicos do nosso cotidiano. Smartphones, laptops, televisores, carros, motocicletas, todos possuem um ciclo de vida de alguns poucos anos. Por outro lado, uma suposta “novidade tecnológica” está sempre no mercado, seduzindo os consumidores a abandonar seu antigo aparelho e adquirir um novo, independente das condições do antigo. A situação dos objetos técnicos hoje é muito mais miserável que no tempo de Simondon, impactando, mais do que em qualquer outro período da história, o planeta. Atualmente há um forte debate sobre o descarte de materiais. Entretanto, a escravidão dos objetos técnicos ao consumo humano ainda é pouco discutido.

Essas condições tornam a obra de Gilbert Simondon bastante atual, podendo ajudar aos historiadores, especialmente historiadores ambientais, em suas análises. Os objetos técnicos caminham com humanos, gatos, cães, baratas, nadam com os peixes, fazem (infelizmente) parte da cadeia alimentar nos oceanos e inclusive está presente, de inúmeras formas, em nossa alimentação. Desprezá-los é desprezar uma parte significativa das grandes mudanças que o planeta vivencia. Ignorá-los, significa silenciar uma imensa gama de processos históricos ocorridos em cooperação com os objetos técnicos.

[1] KECHICKIAN, Anita. Save the Technical Object. Interview with Gilbert Simondon. The following is an English translation of a 1983 interview that Simondon gave to the French magazine Esprit (Esprit 76:147-52. 04/1983). Acessado em 05 de novembro de 2015. https://philosophyofinformationandcommunication.files.wordpress.com/2013/02/gilbert-simondon-save-the-technical-object.pdf

[2] SIMONDON, G. Du mode d’existence dês objets techniques. Paris: Aubier, 1989.

2 comentários em “Gilbert Simondon e a crítica ao ambientalismo (1983)

  1. Clayton Lorentz
    7 de agosto de 2016

    muito boa matéria! mas por que o gif da Sandra?

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    • andrevvital
      7 de agosto de 2016

      Obrigado pelo comentário, Clayton! Eu acho essa parte do clipe Midnight Man fantástica, embora difícil de compreender dentro do contexto do vídeo. De todo modo, ao colar vários transistores em seu rosto, Sandra me parece que chama a atenção para a intimidade entre humanos e objetos técnicos (o objeto técnico não está fora, mas é parte da nossa existência, da nossa cultura, está colado no nosso corpo, na nossa pele, nesse caso). Acho que ajuda a ilustrar um pouco as noções de coexistência e co-evolução, que procurei destacar nesse post. Abraços!

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Publicado às 5 de novembro de 2015 por em Curiosidades provocativas, Notas de leitura e marcado , , .
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