#DifraçõesHistóricas

Uma escrita da História no tempo das contingências

A grande cheia registrada no Porto de Manaus em 1909

Marcador das máximas cheias do rio Negro, no Porto de Manaus (AM)

Marcador das máximas cheias do rio Negro, no Porto de Manaus (AM)

No dia 15 de junho, o portal G1 noticiou que subiu para 44 o número de cidades atingidas pela cheia dos rios Negro e Solimões, no estado do Amazonas. A cidade mais atingida é Boca do Acre, localizada na confluência dos rios Acre e Purus que encontra-se, atualmente, em estado de Calamidade Pública. Estima-se até momento quase 500 mil pessoas atingidas diretamente pelas cheias no estado. A previsão é de que a cheia de 2015 seja uma das cinco maiores já registradas ao longo da história.

O ciclo de cheias e vazantes dos rios da bacia amazônica é um fenômeno comum que ocorre anualmente com o aumento da quantidade de chuvas (o chamado “inverno amazônico”) e nos períodos de estiagem (conhecido localmente como “verão amazônico”). Entretanto, cheias ou secas mais intensas, como parece ser o caso da cheia desse ano, foram registradas em algumas ocasiões ao longo do século XX, e a tendência futura é que ocorram mais vezes devido ao avanço das mudanças climáticas em escala global.

A primeira dessas grandes enchentes foi registrada em Manaus no ano de 1909. Desde 1902 o nível do rio Negro era monitorado no Porto de Manaus e em 1909 a cota de cheia atingiu a marca de 29,17 metros, a maior até então registrada. A cheia histórica de 1909 foi a 6° maior do século XX e afetou de maneiras diferentes o sistema Negro e Solimões. O rio Madeira, afluente do Solimões, apresentou também uma grande cheia segundo informações das populações que trabalhavam nos seringais da parte alta desse rio.

A cheia do rio Madeira e seus afluentes, segundo abordei em minha dissertação de mestrado defendida em 2011, foi mencionada em relatórios da Comissão de Linhas Telegráficas de Mato Grosso ao Amazonas (Comissão Rondon) e no relatório médico do sanitarista Oswaldo Cruz, que em 1910 esteve a serviço da Madeira-Mamoré Railway Co., em Porto Velho. A preocupação de Oswaldo Cruz, no entanto, era com as doenças subsequentes a grande cheia. Segundo constatou em seu relatório, essa enchente foi responsável pelo considerável aumento dos casos de malária no canteiro de obras da ferrovia em 1909, período em que estimou-se a cifra de 90% de operários infectados pela doença.

A partir de uma visão ontológica de doença, baseada nos princípios da teoria dos vetores (onde um vetor animal é necessário na transmissão do parasita de um humano para outro), Cruz concluiu que a quantidade maior de águas estagnadas nos terrenos, promoveu as condições ideais para o aumento populacional do vetor da malária (o mosquito Anopheles). A maior quantidade de vetores do Plasmodium (protozoário da malária) no ambiente em conjunto com a migração de humanos infectados com o parasita para o trabalho nos seringais e no canteiro de obras da ferrovia teria proporcionado a emergência dos devastadores surtos de malária que ocorreram em 1909, e continuariam pelos anos de 1910 e 1911.

De fato, os anos de 1909 e 1910 foram os mais dramáticos para os trabalhadores que atuavam na construção da linha telegráfica unindo Cuiabá a Santo Antônio do Madeira. O ano de 1909 seria de devastador surto de malária em toda parte norte do então Mato Grosso (que englobava na época o atual estado de Rondônia), segundo os relatórios da Comissão Rondon. Justamente a área banhada por rios pertencentes à bacia do Madeira. Essa condição levaria ao atraso nos cronogramas do Governo Federal e aumento nos custos materiais e de vidas humanas na construção da linha.

O caso da grande cheia de 1909 serve para refletir sobre a capacidade de transformação material de eventos como as grandes cheias dos rios amazônicos. Circunscrever as transformações materiais e discursivas promovidas por um acontecimento dessa magnitude a “desastres” de ordem local ou regional tende a ignorar o que ocorre em níveis espaciais e temporais mais amplos. Uma grande cheia nos convida, enquanto historiadores, a transgredir as fronteiras do local, regional e nacional em nossa análise. Ao seguir os fios de transformação material conformadas pelo evento, para mais distante do seu epicentro, identificamos a complexidade de um único acontecimento que tornam-se múltiplos acontecimentos a partir de experiências de grupos sociais, indivíduos e instituições. Experiências essas, em profunda intimidade com a multiplicidade de agentes mais-que-humanos que atuam no espaço. Grandes obras de infraestrutura associadas ao regime fluvial amazônico, como a construção da ferrovia e da linha telegráfica, tendem a intensificar essas dramáticas transformações.

Quanto a atual cheia dos rios Negro e Solimões, o drama dos diretamente atingidos tende a se arrastar por muitos meses, após os primeiros sinais de vazante. Situação bem conhecida na região devido à cotidiana experiência com os rios. Contudo, os grandes corpos de água da Amazônia tendem a surpreender mais e mais os humanos que com eles dividem a existência, especialmente os mais pobres. Mudanças climáticas e intervenções diretas nos rios em nome do ‘desenvolvimento’ poderão ter papel crucial na geração de miséria, doenças e mortes em níveis, talvez, “jamais vistos” como diziam seringueiros e seringalistas no início do século XX.

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Publicado em 17 de junho de 2015 por em Curiosidades provocativas.
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